Neide Miele*
Falar do retorno ao sagrado, no complexo e fragmentado mundo atual, mais que legítimo, é um imperativo do nosso tempo. Inúmeras verdades que mantinham a crença na racionalidade foram sacudidas por fenômenos relacionados com o sagrado.
Após as Revoluções Industrial e Francesa, decretou-se o “crepúsculo dos deuses”. Deus foi sucedido pela máquina e a produção em série prometia o fim da fome medieval. Entretanto, as maravilhas da era industrial não se cumpriram e pouco a pouco o Deus ex machina ruiu.
Acabou o crepúsculo dos deuses
O paradigma mecanicista fez da ciência a detentora da verdade. A segurança científica substituiu a fé, a crença e o imponderável... Porém, depois do físico alemão Albert Einstein, a ciência se deparou com a relatividade. Não há verdade absoluta! Uma verdade científica pode ser superada por outra.
A 2a Guerra Mundial e a bomba atômica inauguraram o cibernético. A energia nuclear prometia ser barata e interminável, e os computadores emergiram como indicador social. O analfabeto, que desconhece o alfabeto, deu lugar ao analfainfo, o inábil em Informática. A Cibernética é um dos parâmetros mais importantes do mundo contemporâneo e, como tudo, pode servir ao bem ou ao mal. Internacionaliza e democratiza a informação, mas exclui quem não possui as novas tecnologias.
Os bens são para poucos e a verdade prometida pela ciência é regida pelo “princípio da incerteza” – como diz o físico David Bohm. Essa constatação provoca a “corrida pelo ouro” e o relativismo ético. A corrupção é lei. Porém, se há um desencantamento com o mundo, há um reencantamento com o imaterial: os deuses voltaram!
O filósofo Nietzsche, em O eterno retorno, diz que o mundo passa pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. Nietzsche poderia ter razão no mundo em que viveu, hoje, porém, há o compartilhar simultâneo dos dois lados da polaridade. O bem e o mal disputam o planeta milímetro a milímetro. O mundo contemporâneo vive em guerra de conquista. Vimos o pacífico Afeganistão, invadido por tanques soviéticos, tornar-se violento. A violência foi projetada para dentro dele mesmo ao destruir seus milenares Budas, e foi projetada para fora transformando aviões de carreira em armas de guerra. Espantados, vimos o sagrado ser profanado e o religioso virar terror. Estados Unidos e Iraque, Israel e Palestina, Irlanda do Sul e do Norte nos apresentam guerras religiosas contemporâneas. O Ocidente é despertado para os problemas religiosos quase sempre considerados apenas como econômicos e políticos. Na verdade, passamos a ver a religião como um aspecto periférico da cultura ocidental, industrial e cibernética. E, de repente, ela se manifesta em formas “bárbaras”.
O medo ou a convicção fez da religião assunto prioritário em alguns países. O Ministério da Educação francês acaba de decretar o ensino das religiões na escola. Por que essa decisão? Simplesmente porque o conhecimento fomenta a tolerância face ao outro.
A 2a Guerra Mundial e a bomba atômica inauguraram o cibernético. A energia nuclear prometia ser barata e interminável, e os computadores emergiram como indicador social. O analfabeto, que desconhece o alfabeto, deu lugar ao analfainfo, o inábil em Informática. A Cibernética é um dos parâmetros mais importantes do mundo contemporâneo e, como tudo, pode servir ao bem ou ao mal. Internacionaliza e democratiza a informação, mas exclui quem não possui as novas tecnologias.
Os bens são para poucos e a verdade prometida pela ciência é regida pelo “princípio da incerteza” – como diz o físico David Bohm. Essa constatação provoca a “corrida pelo ouro” e o relativismo ético. A corrupção é lei. Porém, se há um desencantamento com o mundo, há um reencantamento com o imaterial: os deuses voltaram!
O filósofo Nietzsche, em O eterno retorno, diz que o mundo passa pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. Nietzsche poderia ter razão no mundo em que viveu, hoje, porém, há o compartilhar simultâneo dos dois lados da polaridade. O bem e o mal disputam o planeta milímetro a milímetro. O mundo contemporâneo vive em guerra de conquista. Vimos o pacífico Afeganistão, invadido por tanques soviéticos, tornar-se violento. A violência foi projetada para dentro dele mesmo ao destruir seus milenares Budas, e foi projetada para fora transformando aviões de carreira em armas de guerra. Espantados, vimos o sagrado ser profanado e o religioso virar terror. Estados Unidos e Iraque, Israel e Palestina, Irlanda do Sul e do Norte nos apresentam guerras religiosas contemporâneas. O Ocidente é despertado para os problemas religiosos quase sempre considerados apenas como econômicos e políticos. Na verdade, passamos a ver a religião como um aspecto periférico da cultura ocidental, industrial e cibernética. E, de repente, ela se manifesta em formas “bárbaras”.
O medo ou a convicção fez da religião assunto prioritário em alguns países. O Ministério da Educação francês acaba de decretar o ensino das religiões na escola. Por que essa decisão? Simplesmente porque o conhecimento fomenta a tolerância face ao outro.
Fenômeno religioso, objeto da ciência
O fenômeno religioso é um dos quatro pilares da cultura humana. Na escola os alunos têm contato com os outros três: a Filosofia, a Arte e a Ciência. A religiosidade é um patrimônio cultural de todos os povos e, como tal, deveria ser também matéria de estudo e pesquisa. O conhecimento abre a mente, enquanto o fundamentalismo religioso promove a intolerância, dificulta o relacionamento, destrói a integração e o respeito mútuo e não admite opiniões divergentes. Ao se ter por pressuposto que a ignorância é a mãe da intolerância, a maneira mais consequente de superar a ignorância e a rivalidade é promover o conhecimento.
O estudo científico do fenômeno religioso nasceu com as Ciências Sociais. O sociólogo Émile Durkheim escreveu o clássico As formas elementares da vida religiosa. O sociólogo e economista Max Weber escreveu A ética protestante e o espírito do capitalismo. Já o filósofo Karl Marx teria dito que “a religião é o ópio do povo”. Ter dito ou não é irrelevante, porém é inegável que o controle ideológico exercido pela religião foi objeto de estudo e da preocupação teórica de Marx.
O filósofo Ludwig Feuerbach, em A essência do cristianismo, diz que a religião é o solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revelação dos seus mais íntimos pensamentos e a confissão pública dos seus segredos de amor.
Os pioneiros do estudo das religiões se depararam com um problema: falar de religião era o mesmo que falar de Deus e, sobretudo, do ponto de vista de um Deus cristão. Entretanto, quanto mais o olhar se expandia, mais se constatava que muitas tradições religiosas tinham uma pluralidade de deuses, e tantas outras nem sequer veneravam um deus. Assim, o termo “Deus” foi substituído por “sagrado” e esse conceito ajudou as primeiras teorizações sobre o fenômeno religioso.
Para Durkheim, o sagrado é o traço essencial dos fenômenos religiosos e se define pela oposição ao profano. Sagrado e profano seriam dois mundos contrários, em torno dos quais gravita a vida religiosa. As coisas e os seres sagrados protegeriam o indivíduo e a comunidade, enquanto os seres e as coisas profanas só entrariam em contato com os primeiros através de ritos prescritos pela crença que sustenta essa divisão do mundo. O sagrado seria um anseio de potência, de uma energia que agiria sobre o profano.
O teólogo Rudolf Otto, na obra O sagrado, fala da dimensão da existência a que chama “mistério tremendo e fascinante”. Aborda o sagrado como categoria que denota a manifestação do numen, palavra latina que significa “vontade divina”, “atuação divina” ou “essência divina”. Dessa forma, o sagrado apresenta-se como diverso da realidade natural. Descrevendo as características desse fenômeno, Otto fala da experiência do mysterium tremendum, uma vivência fascinante perante o ser ou objeto sagrado.
O romeno Mircea Eliade, historiador das religiões, no livro O sagrado e o profano, elogia Otto e diz que seu sucesso se deve a essa nova perspectiva. Em vez de estudar termos como Deus e religião, ambos analisaram as “experiências religiosas” humanas. Porém, a maior contribuição de Eliade é a diferenciação entre sagrado e profano. Ele começa definindo o sagrado como oposto ao profano. Sagrado indica algo separado e consagrado; profano denota o que está em frente ou fora do templo. Eliade acredita que o homem entra em contato com o sagrado porque este é diferente do círculo sagrado, independentemente do espaço da manifestação. Muita profanação se faz dentro dos templos, e coisas sagradas acontecem em espaços profanos. A diferença entre sagrado e profano está na intenção do ato e não no espaço onde ocorrem. Eliade chama essa manifestação de hierofania, palavra grega que significa, literalmente, “revelação de algo sagrado”, não importa se o sagrado se manifesta na pedra, na árvore, no animal, numa imagem ou em Deus.
O estudo científico do fenômeno religioso nasceu com as Ciências Sociais. O sociólogo Émile Durkheim escreveu o clássico As formas elementares da vida religiosa. O sociólogo e economista Max Weber escreveu A ética protestante e o espírito do capitalismo. Já o filósofo Karl Marx teria dito que “a religião é o ópio do povo”. Ter dito ou não é irrelevante, porém é inegável que o controle ideológico exercido pela religião foi objeto de estudo e da preocupação teórica de Marx.
O filósofo Ludwig Feuerbach, em A essência do cristianismo, diz que a religião é o solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revelação dos seus mais íntimos pensamentos e a confissão pública dos seus segredos de amor.
Os pioneiros do estudo das religiões se depararam com um problema: falar de religião era o mesmo que falar de Deus e, sobretudo, do ponto de vista de um Deus cristão. Entretanto, quanto mais o olhar se expandia, mais se constatava que muitas tradições religiosas tinham uma pluralidade de deuses, e tantas outras nem sequer veneravam um deus. Assim, o termo “Deus” foi substituído por “sagrado” e esse conceito ajudou as primeiras teorizações sobre o fenômeno religioso.
Para Durkheim, o sagrado é o traço essencial dos fenômenos religiosos e se define pela oposição ao profano. Sagrado e profano seriam dois mundos contrários, em torno dos quais gravita a vida religiosa. As coisas e os seres sagrados protegeriam o indivíduo e a comunidade, enquanto os seres e as coisas profanas só entrariam em contato com os primeiros através de ritos prescritos pela crença que sustenta essa divisão do mundo. O sagrado seria um anseio de potência, de uma energia que agiria sobre o profano.
O teólogo Rudolf Otto, na obra O sagrado, fala da dimensão da existência a que chama “mistério tremendo e fascinante”. Aborda o sagrado como categoria que denota a manifestação do numen, palavra latina que significa “vontade divina”, “atuação divina” ou “essência divina”. Dessa forma, o sagrado apresenta-se como diverso da realidade natural. Descrevendo as características desse fenômeno, Otto fala da experiência do mysterium tremendum, uma vivência fascinante perante o ser ou objeto sagrado.
O romeno Mircea Eliade, historiador das religiões, no livro O sagrado e o profano, elogia Otto e diz que seu sucesso se deve a essa nova perspectiva. Em vez de estudar termos como Deus e religião, ambos analisaram as “experiências religiosas” humanas. Porém, a maior contribuição de Eliade é a diferenciação entre sagrado e profano. Ele começa definindo o sagrado como oposto ao profano. Sagrado indica algo separado e consagrado; profano denota o que está em frente ou fora do templo. Eliade acredita que o homem entra em contato com o sagrado porque este é diferente do círculo sagrado, independentemente do espaço da manifestação. Muita profanação se faz dentro dos templos, e coisas sagradas acontecem em espaços profanos. A diferença entre sagrado e profano está na intenção do ato e não no espaço onde ocorrem. Eliade chama essa manifestação de hierofania, palavra grega que significa, literalmente, “revelação de algo sagrado”, não importa se o sagrado se manifesta na pedra, na árvore, no animal, numa imagem ou em Deus.
O espaço sagrado é interior ao ser humano
Para Eliade, a experiência religiosa requer não tanto a presença de divindades, mas a convicção de que é possível experimentar um princípio de unicidade. Quando o sagrado assume essa demissão, torna-se compreensível a necessidade de conferir significado a todos os atos fundamentais da vida, sejam eles a alimentação, a reprodução, a sexualidade, o trabalho ou o lazer. O sagrado não implica na crença em Deus, nos deuses ou em seres imateriais. É, para o ser humano, fonte da consciência de sua existência no mundo. O mundo sagrado é o universo das interdições, enquanto o mundo profano corresponde ao das transgressões. Nesse sentido, é um fenômeno interno que se complementa no externo. Essa bipolaridade entre o interno e o externo caracteriza um intercâmbio contínuo entre sujeito e cultura, sujeito e realidade compartilhada.
A possibilidade de criar símbolos e ações que veiculem as concepções resultantes da experiência de vida para a realidade cultural leva o ser humano a ter uma vivência estética e transcendente. Tal experiência se caracteriza pela apreensão do próprio ser como transcendendo a sua experiência imediata e alcançando uma possibilidade de viver além do tempo e do espaço. A ambivalência do sagrado e do profano não é mais do que a expressão que caracteriza a própria polaridade humana. É a eterna luta entre o bem e o mal, não fora, mas dentro do ser humano. Em todos os níveis da existência é possível surpreender essas duas esferas e esses dois mundos.
A possibilidade de criar símbolos e ações que veiculem as concepções resultantes da experiência de vida para a realidade cultural leva o ser humano a ter uma vivência estética e transcendente. Tal experiência se caracteriza pela apreensão do próprio ser como transcendendo a sua experiência imediata e alcançando uma possibilidade de viver além do tempo e do espaço. A ambivalência do sagrado e do profano não é mais do que a expressão que caracteriza a própria polaridade humana. É a eterna luta entre o bem e o mal, não fora, mas dentro do ser humano. Em todos os níveis da existência é possível surpreender essas duas esferas e esses dois mundos.
* Neide Miele é doutora em Sociologia e coordenadora do curso de Especialização em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba.
Miniglossário
Deus ex machina – Deus é a máquina. Expressão usada durante a Revolução Industrial para dizer que as máquinas haviam substituído a Deus, que não haveria mais necessidade dele, mas sim delas.
Interdição – Religiões de proibição, impedimento.
Transgressão – Violar a proibição é passar por cima do impedimento.
Conheça mais
GUERRIERO, Silas. (Org.). O estudo das religiões – desafios contemporâneos. São Paulo: Editora Paulinas, 2003. (Coleção Estudos da ABHR, cód. 50300-2).
O organizador Silas Guerriero e renomados estudiosos da Associação Brasileira de História das Religiões falam do sagrado e do profano, no contexto da religião no Brasil e na escola.
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