Ricoeur e o mito babilônico da criação
O drama de criação e a visão «ritual» do mundo
"O mito babilônico da criação é talvez aquele em que a exterioridade do mal, ou melhor dito, a conaturalidade do mal e do mundo, é afirmada na sua maior extensão.
Tiamat é o princípio originário, o caos de onde provêm tanto os deuses representantes da ordem como os representantes da desordem. Para instaurar a ordem, o cosmos hierarquizado e diferenciado, Marduk, seu descendente, é obrigado a dar-lhe luta e a vencê-la, assim como aos deuses seus aliados. Aventa-se assim a possibilidade de “que a Origem das coisas esteja de tal forma para além do bem e do mal, que dê origem simultaneamente ao princípio tardio da ordem — Marduk — e às figuras retardadas do monstruoso, e que ela deva ser destruída, dominada enquanto que origem cega”. O próprio homem é formado a partir dos restos mortais do chefe dos deuses vencidos e deste modo a substância do mal está entretecida com todos os níveis da realidade. Isto significa ainda que “o mal é tão velho como o mais velho dos seres; que o mal é o passado do ser; que ele é aquilo que foi vencido pela instituição do mundo; que Deus é o futuro do ser”.
Reconhecendo as forças do caos e da desordem em si e no mundo, resta-lhe ao homem imitar o comportamento do deus fundador e instaurar a ordem, seja ritualmente, através da repetição simbólica do drama original, seja através da luta contra os inimigos da cidade, assimilados às ressurgentes forças do caos. “A coerência do mito permite antecipar aquilo que se pode chamar uma teologia da Guerra Santa; se o Rei é a figura do deus vencedor do caos, o Inimigo deveria ser a imagem na nossa história das potências do mal e a sua insolência representar uma ressurgência do antigo caos.”
Para aquilatar do poder deste mito torna-se necessário seguir algumas das suas reencarnações através da história. Ricoeur avisa-nos que não nos devemos enganar pela sua aparente simplicidade e forma primitiva, pois ele “anuncia tipologicamente as ontogêneses mais subtis da filosofia moderna e principalmente as do idealismo alemão”. Para além destes avatares filosóficos, temos a referida teologia da Guerra Santa, que teve o seu mais alto expoente na Idade Média cristã e muçulmana, mas cujos ecos vão mais longe, desde a figura do Rei hebraico ao nazismo; é também a mitologia dos heróis populares de todos os tempos, a braços com todos os monstros possíveis ou imaginários. Trata-se sempre de lutar e vencer uma qualquer representação do mal, que tanto pode assumir forma exterior quanto interior ao homem, mas que é sempre algo anterior, algo já aí.
Uma das características desta mitologia, notada por Ricoeur, é o seu alheamente em relação a considerações de caráter moral. O herói ou o deus vence ou perde em função da sua força, seja ela a simples força física ou a superioridade de ânimo, inteligência, astúcia, e não em função da sua bondade ou maldade. O que impede Gilgamesh, o herói babilônio, de alcançar a imortalidade, não é qualquer pecado cometido, mas o simples fato de não ter conseguido permanecer desperto durante o tempo de prova. É uma violência superior que permite a Marduk vencer a violência de Tiamat: “no decurso da luta que opõe Marduk a Tiamat, Marduk aparece como potência bruta, tão pouco ética como a cólera de Tiamat.” A ação, mesmo ritual ou sobretudo a ação ritual, é encarada no seu aspecto de ação eficaz, de algo que produz ou não um efeito, e não numa perspectiva de mérito ou demérito ético ou moral.
Existe uma certa grandeza nesta visão: é a imagem do guerreiro enfrentando o inimigo e sabendo que pode vencer ou morrer, mas sendo capaz, de qualquer modo, de olhar a violência de face, forte no seu esforço para existir e no seu desejo de ser. Talvez a salvação passe por aqui, como parece indicar aquele episódio estranho da Bíblia que é a luta de Jacob com o anjo.”
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Fonte:
Jorge Manuel Santos Andrade: ‘Os mitos, o homem e o sagrado na filosofia de Paul Ricoeur”. (Universidade Católica Portuguesa - FACULDADE DE FILOSOFIA. Dissertação de Mestrado em Filosofia). Funchal, 1995.
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